No ano de 2021 foram registrados 28 casos de domésticas em situação de trabalho em condição análoga a de escravo pelo Grupo Móvel de fiscalização ligado ao Ministério do Trabalho e Previdência, volume recorde de libertações desde o primeiro flagrante, em 2017. Neste ano, já foram contabilizados ao menos quatro casos.
O aumento de casos é apontado como efeito da repercussão da história de Madalena Gordiano, libertada no fim de 2020 após 38 anos em condições análogas à escravidão. O caso foi retratado pelo programa “Fantástico”, da TV Globo, e impulsionou as denúncias.
Madalena Gordiano tinha oito anos quando bateu em uma porta para pedir comida. A dona da casa a convidou para entrar, uma professora branca, que prometeu adotá-la, mas ela nunca foi adotada nem voltou à escola.
Cozinhar, lavar, limpar banheiros, tirar o pó, arrumar a casa da família de Maria das Graças Milagres Rigueira se tornou sua rotina diária durante as quatro décadas seguintes. Nunca teve salário, dias de folga ou férias, de acordo com os procuradores que investigam o caso.
“Fui pedir pão porque tinha fome, mas ela me disse que não me daria se eu não ficasse morando com ela”, contou a vítima ao Fantástico.
No ano passado, Silvana Olinda Mendes, que dedicou 34 anos da sua vida servindo a uma mesma família também foi resgatada. A assistência social da unidade de saúde para onde foi levada quando teve Covid, desconfiou de exploração e acionou autoridades. Ao ser identificada pela equipe de resgate de trabalho escravo, Silvana tinha uma ferida no abdômen
Silvana foi criada em um orfanato e ainda adolescente foi “recebida” em uma casa em São Paulo, capital, onde passou a trabalhar nos serviços domésticos. Era a sua melhor chance de ter teto e comida.
Ela contou que nunca recebeu salário nem férias, não tinha descanso semanal nem carteira assinada. A rotina integral de serviços só foi interrompida após Silvana ser infectada pelo coronavírus no ano passado, quando, segundo ela, foi “largada” em um hospital.
Silvana relatou que como ela não tinha ninguém eles eram como uma família para ela. Ela acreditava que, por eles estarem dando as coisas para ela, ela não estaria sendo maltratada. Porém quando adoeceu viu que eles só queriam que ela trabalhasse apesar de machucada.
Ela contou ainda que já estava com a saúde debilitada antes de pegar Covid, pois possuía uma hérnia na barriga, que foi operada, porém o local abriu devido à falta de repouso na pós-cirurgia, daí a ferida no abdômen.
Hoje, Silvana mora com uma irmã. Fez um acordo judicial para receber, de forma parcelada, as verbas devidas por seus ex-empregadores e uma indenização. Enquanto espera receber, a mulher amplia seus horizontes para além dos muros da casa onde viveu.
— Eu não sabia o que era a vida. Nasci e moro há tanto tempo em São Paulo e agora que eu estou começando a conhecer a cidade — disse.
O advogado que representa a família empregadora nega o que foi registrado pelo ministério. Segundo ele, Silvana recebeu salários até a matriarca da família morrer, sendo devidas apenas verbas mais recentes, e cita documento em que a informação é atribuída à própria Silvana. Segundo o defensor, os patrões optaram pelo acordo judicial, que supera R$ 150 mil, por conta do “risco financeiro”.
Um grande desafio é fazer com que as resgatadas vivam suas vidas com liberdade. O perfil das vítimas, pessoas de idade mais avançada que passaram quase que toda a sua existência no entorno de uma família com a qual desenvolveram laços de afetividade, dificulta a reinserção social.
A lógica da servidão desse tipo tem muitas sutilezas. Uma delas é o isolamento social como forma de aprisionar, sem que seja necessário manter vigilantes armados ou cadeados nos portões, a exemplo de expedientes usados na escravidão contemporânea em fazendas.
No trabalho escravo doméstico, geralmente as vítimas foram desencorajadas a estudar e até repreendidas quanto a fazer amizades ou manter contatos com parentes. As saídas da casa em que trabalham se restringem a mercados e padarias próximos.
Quando resgatadas, não é incomum que queiram permanecer no local da exploração, explica Luiz Henrique Ramos Lopes, coordenador-geral de fiscalização do trabalho do Ministério do Trabalho e Previdência Social:
As equipes de erradicação do trabalho escravo do Ministério do Trabalho costumam obter uma ordem judicial para entrar nas casas, já que o domicílio é inviolável pela lei. Auditores fiscais relatam que costumam ouvir dos patrões a explicação de que a funcionária em questão é “como se fosse da família”.
Esse foi o teor dos depoimentos dos empregadores de Elisabete Dias Araújo durante o resgate dela em outubro do ano passado, em Salvador. Os ex-patrões alegaram que Bete, como é chamada, “nunca teve tratamento desigual” em relação aos quatro filhos desde quando chegou à casa, ainda criança, deixada pelo pai. A doméstica passou 44 anos cuidando de todos os afazeres do lar, incluindo ajudar a sua chefe quando, no passado, ela dava aulas particulares a crianças na própria casa.
A família apropriou-se ainda do auxílio emergencial pedido em nome de Bete durante a pandemia e usou o dinheiro para comprar o beliche e o armário que ficam no quarto que ela compartilhava com os netos dos patrões.