Ação do MPT resulta em acordo judicial com todos os envolvidos na cadeia produtiva; réus são responsabilizados pela submissão de trabalhadores a condições degradantes
Na manhã dessa quinta-feira (23/09), na sede da Prefeitura Municipal de Campos Novos Paulista, vinte e quatro trabalhadores rurais resgatados de condições análogas à escravidão em março de 2021, finalmente receberam as verbas trabalhistas que lhe eram devidas. A medida resulta de um acordo judicial firmado entre os empregadores e o Ministério Público do Trabalho (MPT), perante a Vara do Trabalho de Ourinhos, pelo qual os réus se comprometeram a efetuar o registro em carteira de trabalho, pagar as verbas rescisórias (tais como salário, aviso prévio, férias, décimo terceiro) e depositar o FGTS de todos eles. Dois trabalhadores, que não compareceram no local, terão os valores depositados judicialmente pelos réus; os cinco adolescentes beneficiários receberam os valores na presença de seus pais. Todos os contratos de trabalho foram devidamente formalizados. Os procuradores José Fernando Ruiz Maturana e Marcus Vinícius Gonçalves, responsáveis pelo acordo, ajuizaram ação civil pública contra os empregadores, que arrendaram o Sítio Engemin, em Campos Novos Paulista, na altura da BR 153, para o cultivo de melancias. A judicialização do caso foi necessária frente à recusa dos inquiridos em pagar as verbas trabalhistas.
A operação realizada em março de 2021 pelo MPT e pela Polícia Rodoviária Federal (PRF) resultou na prisão em flagrante de dois homens por crime de redução de trabalhadores à condição análoga à escravidão (previsto no artigo 149 do Código Penal), sendo eles o dono da colheita e o turmeiro que arregimentava a mão de obra. Entre os trabalhadores, que não recebiam equipamentos de proteção, galões de água ou marmitas térmicas, estavam 5 pessoas menores de 18 anos, sendo 3 meninos e uma menina, com idade de 15 anos cada um, além de um adolescente de 17 anos. Eles recebiam cerca de 70 reais por dia de trabalho, e admitiram faltar na escola para fazer a colheita na lavoura. Os adolescentes já possuíam as marcas do trabalho pesado a que eram submetidos, com as mãos e os pés machucados, pela ausência dos EPIs, trabalhando sem luvas e descalços no campo. O decreto 6.481/2008 considera a atividade exercida por eles como uma das piores formas de trabalho infantil. Nas frentes de trabalho não havia instalações sanitárias, mesas, cadeiras ou proteção contra intempéries, itens obrigatórios de acordo com a legislação trabalhista voltada ao meio rural. Os colhedores eram transportados à lavoura de forma precária, por meio de veículos improvisados. Ação cautelar – Devido à gravidade do caso, uma primeira ação, de natureza cautelar, foi imediatamente ajuizada pelo MPT para assegurar o pagamento do seguro-desemprego aos trabalhadores resgatados em condições degradantes e para bloquear ativos financeiros dos acusados, objetivando o pagamento das verbas trabalhistas devidas. Uma liminar foi prontamente concedida pelo juiz Marcelo Siqueira de Oliveira, da Vara do Trabalho de Ourinhos. “O conjunto probatório permite inferir que a conduta dos Requeridos subsume-se à hipótese contida no art. 149, “caput” e § 2º, do Código Penal Brasileiro, porquanto sujeitaram os trabalhadores, dentre os quais repise-se haver cinco menores, a experimentarem circunstâncias degradantes de trabalho, reduzindo-os à condição análoga à de escravos. Como bem disse o Ministério Público do Trabalho, pode-se resumir a situação encontrada da seguinte forma: “miseráveis trabalhando em total degradância, sob a dependência de outros, à margem do sistema constitucional de direitos mínimos e longe do controle estatal”. Muito embora o país esteja passando por um momento extremamente difícil, em todos os sentidos, em face do combate à Pandemia do SARS-COV- 2, não pode o Estado fazer vistas grossas à lei, tolerando o intolerável, institucionalizando a miséria humana como atributo daquilo que se convencionou chamar de “novo normal”, escreveu na decisão o magistrado.
Ação civil pública – Com o prosseguimento das investigações e a identificação dos beneficiários da cadeia produtiva que resultou na exploração dos trabalhadores, um total de 8 empresários envolvidos foram processados, em uma nova ação civil pública proposta contra os dois proprietários do imóvel rural (advogado e médico da região), o arrendatário da propriedade, os donos da roça de melancia (pai e filho), um produtor rural dono de plantio em que os trabalhadores também foram explorados, o financiador da plantação de melancias e o turmeiro proprietário do ônibus que realizava o transporte dos trabalhadores rurais. Um acordo judicial homologado em agosto de 2021 encerrou o pleito judicial.
Acordo – A conciliação prevê, além do pagamento das verbas devidas e do registro do contrato de trabalho, que os réus se comprometam, sob pena de multa diária de R$ 1.000,00 por item descumprido, a cumprir a legislação prevista para o trabalhador rural, em quinze obrigações trabalhistas previstas no acordo, entre as quais: abster-se de reduzir trabalhadores a condição análoga à de escravos, quer submetendo-os a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-os a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto, quer cerceando o uso de qualquer meio de transporte, com o fim de retê-los no local de trabalho, quer mantendo vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apoderando de documentos ou objetos pessoais dos trabalhadores, com o fim de retê-los no local de trabalho; não contratar, manter ou permitir que crianças e adolescentes menores de 18 anos de idade desenvolvam atividades na lavoura, em desconformidade com o Decreto nº 6.481/08; a disponibilizar água potável, equipamentos de proteção individual e ferramentas de trabalho, estojo de primeiros socorros, instalações sanitárias, local para refeições e transporte seguro para os trabalhadores; e abster-se de admitir empregado sem a respectiva anotação da carteira de trabalho e realização de exame médico admissional. Escravidão contemporânea – A situação encontrada pelo MPT e pela PRF foi retratada na ação como um caso de escravidão contemporânea, quando não são garantidas condições mínimas de dignidade a um ou mais trabalhadores, sujeitando-os a trabalhos degradantes, exaustivos, a ambientes de trabalho inadequados, à servidão por dívida, dentre outras situações abusivas que são opostas ao trabalho digno e decente, e não somente quando o trabalho é forçado ou obrigatório.
“A associação da expressão “trabalho escravo” somente ao trabalho forçado, aliás, leva ao grave risco de se tornar pouco sensível aos olhos dos juristas e da sociedade as formas modernas de escravidão, muito mais sutis e simuladas, como as que são usualmente encontradas, nos dias atuais, pelos agentes do Estado que atuam na repressão ao trabalho escravo”, explica o procurador Marcus Vinícius Gonçalves. Cadeia produtiva e desapropriação – Na ação civil pública, o MPT demonstrou o envolvimento dos réus na cadeia produtiva e responsabilizou todos eles pela situação que levou à prática do trabalho escravo, invocando a aplicação da “Teoria da Cegueira Deliberada”, pela omissão quanto a um “dever razoável de cautela”, com a responsabilização de todos pela conduta ilícita praticada e pelos danos que decorreram dela. “Na dinâmica da cadeia produtiva, levando-se em conta a referida teoria, o agente econômico situado no nível mais elevado beneficia-se diretamente da força de trabalho de toda a cadeia produtiva, contudo, de forma deliberada, fecha os olhos para as condições de trabalho, colocando-se em condição de ignorância”, afirma Marcus Vinícius. Para o procurador, “trata-se de uma cegueira absolutamente proposital em face daquilo que ocorre ao seu redor, em que não há como se alegar ignorância de uma situação em relação à qual se detém o dever razoável e objetivo de conhecer. Todos os réus lucraram com o menor custo da utilização de mão de obra em condições tão degradantes, devendo todos serem responsabilizados pela submissão dos trabalhadores a condições análogas às de escravo e pela exploração do trabalho de menores de idade na lavoura”, disse. Mais atuações – Com o pagamento das verbas devidas aos trabalhadores resgatados, a atuação do Ministério Público agora se volta contra os proprietários da terra e demais produtores rurais acionados na ação, para verificar se nas demais fazendas de que são proprietários ou exploram atividade rural há o cumprimento da legislação trabalhista, evitando-se que a situação em que foi constatado o trabalho escravo se repita, conforme compromisso assumido pelos réus no acordo judicial. “O diferencial dessa atuação do MPT em Campos Novos Paulista está na responsabilização dos donos dos imóveis rurais, pois é importante que eles entendam que possuem um dever de vigilância em relação ao uso da propriedade, que não pode servir de instrumento para a prática do trabalho escravo. A Constituição Federal determina expressamente que a propriedade rural tenha a sua função social, com a observância das disposições que regulam as relações de trabalho, favorecendo o bem-estar dos trabalhadores rurais. Ela também prevê que a propriedade rural onde for constatada a exploração do trabalho escravo será expropriada e destinada à reforma agrária”, finaliza Marcus Vinicius. Na região de Marília, e em todo oeste paulista, a ação do MPT se intensificou no campo, com a realização de diligências nas propriedades rurais para reprimir a submissão dos trabalhadores a situações degradantes de trabalho.